21/10/09

O rei e as dores

E foi num dia bastante tempestuoso que o rei de espadas recebeu, mais por obrigação do que por gosto, um conjunto peculiar de convidados para jantar. E assim às nove da noite num dos recantos mais sórdidos da sua torre sombria sentaram-se à mesa, para além do rei, a dona otite, a marquesa enxaqueca, o engenheiro dente do siso extraído e a madame ausência de alguém que poderia vir a ser especial.

Carrancudo mas elegante, o rei sentou-se à cabeceira da mesa muito bem decorada por uma toalha cor de vinho e dois candelabros negros e soberbos. Os convidados sentaram-se em seguida muito empolgados com o jantar requintado que seria servido pelo rei, ora não contavam eles que o rei, de forma a demonstrar o seu profundo desagrado com todo aquele ajuntamento, serviria a si próprio um prato de delicioso strogonoff e aos seus convidados um monte de arroz em papa acompanhado de batatas mal cozidas e sem sal.

A refeição iniciou-se assim com caras que não conseguiam disfarçar nem a desilusão nem a revolta. Eis se não quando a marquesa enxaqueca inicia um disparatado discurso acerca das suas grandes façanhas nos territórios das mentes alheias, discurso este que foi interrompido pelo senhor engenheiro dente do siso extraído que se gabou, sem qualquer noção ou bom senso, do quanto as suas proezas eram muito mais consistentes do que a dos outros convidados. E nisto começou uma disputa risível e desesperada por parte de todos os convidados que na tentativa de se afirmarem perdiam gradualmente a consciência total do ridículo. A dona otite gritava, –“é a mim que mais temem”, a madame ausência de alguém que poderia vir a ser especial vociferava –“é de mim que sentem mais falta” e puxava os próprios cabelos, já o senhor engenheiro batia na mesa com palma da mão e jurava a pés juntos que era com ele que todas as criancinhas tinham pesadelos. Chegou ao cúmulo da marquesa enxaqueca atirar um dos sapatos à dona otite enquanto lhe grasnava algo completamente indecifrável devido às torrentes de baba que lhe saiam da boca.

O rei perdeu então a paciência e puxou a toalha, lançando todo o serviço e comida ao chão, numa detonação ensurdecedora. Os quatro convidados ficaram petrificados, com uma expressão de perplexa ignomínia na exacta posição em que se encontravam (a madame ausência no chão agarrada às meias já rasgadas da dona otite que por sua vez puxava os cabelos ao senhor engenheiro, o qual se encontrava em cima da marquesa enxaqueca que lhe mordia a perna).

- “Acho inconcebível” – exclamou o rei – “vocês autoconvidam-se para jantar na minha torre, incomodam-me, eu recebo-vos com a cortesia que merecem e vocês, suas tragédias aberrantes resolvem presentear-me com um festival de abjecção, mesquinhez e nulidade cerebral. Bano-vos do meu reino para um monte de excrementos insignificante que é aquilo que vocês valem e merecem, nem que para isso me tenha que encharcar de drogas e estupefacientes.”
E dito isto, todos os convidados foram automaticamente recambiados para o monte de excrementos apropriado.